Não obstante o glamour contido em seu paisagismo, o seu nome faz referência a uma das figuras mais importantes relacionadas à Cabanagem; evento de destaque na memória política paraense, ao qual se atribui a glória de ter sido, muito provavelmente, o mais notável movimento popular da história do Brasil [1]. Caracterizou-se pela sublevação da população de origem humilde, agregada por um sentimento comum de identidade entre povos etnica e culturalmente diferentes (índios, negros, mestiços etc.) que, juntos, rebelaram-se contra o mandonismo branco e português elitista na Província do Pará na primeira metade do século XIX [2].
Contextualizado o cenário em que me encontrava com minha amiga, que pela primeira vez visitava a cidade, e após termos caminhado sob as frondosas mangueiras, admirado o belo coreto central em "art nouveau", passado por algumas das pontes que cruzam os lagos artificiais e admirado a linda calçada artisticamente arranjada em mosaico português, pusemo-nos a saborear água de coco sentados em um dos bancos da Praça disposto de frente para a Rua dos Mundurucus.
Depois de um breve silêncio, a minha visitante interpôs, logo após um forte respiro, um comentário objetivo em forma de uma desconcertante pergunta: “muito bem, bela a Praça, mas a Belém indígena, onde está?”. A indagação veio a propósito, uma vez que, na condição de uma viajante contumaz, provavelmente já teria visitado outros lugares em que a presença de populações ancestrais se faz presente de forma marcante na paisagem das cidades visitadas. Eu mesmo pude ver isso na capital do México e também na cidade de Cuzco, no Peru; ambas, assim como outras urbes latino-americanas, impregnadas de cultura pré-colonial na sua vida cotidiana e em suas belas paisagens.
No nosso caso, tais atributos praticamente desapareceram da paisagem urbana, mas, inobstante a isso, fiquei pensando em como falar à minha interlocutora que a resposta à sua pergunta estava ali, justo a sua frente, a conversar com ela; sendo eu mesmo uma herança indígena na forma de figura humana a integrar a paisagem que tanto lhe encantava.
De fato, os homens integram as paisagens, essas formas materiais captadas pelos nossos sentidos [3], e elas mudam completamente quando anunciam a presença ou a ausência da figura humana a compor, junto com outros elementos, o quadro que retemos em nossas mentes dos espaços que observamos. Tornou-se comum, por exemplo, representar as cidades contemporâneas por meio de recursos breves de suas paisagens, que as retratam de maneira sintética, sem a preocupação de traduzi-las em sua complexidade. É o que ocorre com os "skylines", recursos imagéticos mobilizados para fixar representações a serem oferecidas e consumidas de determinadas paisagens urbanas.
A palavra, de origem inglesa, busca traduzir, em forma de desenho, a silhueta de uma cidade a se projetar no horizonte, tendo o céu como fundo; daí a etimologia da palavra: "sky" (céu), "line" (linha). Ela busca, com isso, definir os contornos e elementos que são tidos como os mais característicos de uma cidade e que chamam a atenção quando vista a partir de certa distância, tornando-a facilmente reconhecida por meio de símbolos, monumentos, edifícios, formas etc. Alguns "skylines" famosos e inconfundíveis são hoje facilmente identificados mundialmente, como o de Paris, o de Nova Iorque, o de Londres, o de Dubai e o do Rio de Janeiro.
[Foto 2]
Em se tratando de Belém, algumas formas construídas ao longo de sua história foram eleitas como representativas de seu "skyline" (Foto 2). E, com o tempo, tem-se buscado “aperfeiçoá-lo”, incorporando outros símbolos que atribuem um certo ar de modernidade ou de pós-modernidade à cidade. Para quem a vê, por exemplo, desde o encontro do Rio Guamá com a Baía de Guajará, identifica-a por meio de elementos característicos, como a antiga fortificação, ladeada por construções residenciais e comerciais antigas e por imponentes torres de igrejas barrocas; o Mercado do Ver-o-Peso, com sua feira, ancoradouro e embarcações; e o conjunto de arranha-céus ao fundo, que se arrumam basicamente em duas camadas. Trata-se de combinar, por meio dessa representação sintética, elementos da paisagem de uma cidade acumulados ao longo de seus supostos quatrocentos e cinco anos de história completados em 2021.
A partir dessas linhas, faz-se um esforço de traduzir a cidade, por meio de um mosaico de tempos que narram parte de seu passado e de seu presente, mas que, acima de tudo, permitem imaginar em muito o que pode ser o seu futuro. Ao modo de uma leitura arqueológica da cidade, justapõem-se estratos histórico-espaciais que se assegura como sendo capazes de revelar não apenas linhas arquitetônicas, mas também estéticas e elementos socioeconômicos que lhe caracterizam hoje, atribuindo-lhes sentidos simbólico-culturais que fixam a imagem da cidade não apenas para o visitante, mas também para os que nela moram.
Curioso é observar que em momento algum é a cidade indígena - a da pergunta da minha amiga! - que se busca assinalar. É como se essa cidade estivesse presente apenas nos seus primeiros séculos de formação. Por isso, normalmente apresenta-se ao visitante a “Belém portuguesa”, tida como parte do primeiro dentre os estratos histórico-arqueológicos que identificamos, e que é revelada, por exemplo, através do Forte do Presépio (ou do Castelo!) e do casario colonial, que destacam os traços e os desenhos da cidade em sua datada “gênese”, tornada está o ponto de partida para o que de fato se tem hoje como cultura e civilização urbana. Esquece-se, por conseguinte, daquilo que existia anteriormente, ou seja, de uma cidade que, na sua origem, era indígena como "urbs" (morfologia econômico-social), e portuguesa como "civitas" (morfologia político-administrativa); isso se admitirmos que fora o padrão cultural do nativo, e não o do colonizador, que prevalecera nesse primeiro momento [4].
À “Belém portuguesa” sucede-se a “Belém italiana”, representada logo em seguida. Trata-se de uma espécie de segundo estrato histórico-arqueológico, em forma de igrejas barrocas, de palácios, casarões e de espaços públicos surgidos no século XVIII, muitos deles caprichosamente rabiscados nos projetos do urbanismo bolonhês de Antônio Landi e encarregados de conferir a Belém ares urbanos civilizatórios e distantes da “precariedade” construtiva e de valores até então definidos em sua forma e em seu conteúdo socioespacial.
Referem-se esses dois primeiros estratos a uma Belém mais antiga, sem ainda os grandes traços de modernidade que só seriam acrescentados a partir da segunda metade do século XIX. Com a economia da borracha, o centro histórico foi artisticamente retocado com elementos do "art nouveau" e do "art decó" e, especialmente, na forma da arquitetura de ferro, que ajudaram a difundir a higienização da elitista Belém do intendente Antônio Lemos. É desse momento, inclusive, que um dos elementos mais característico de sua imagem, o mercado de ferro do Ver-o-Peso, passa a integrar a cena urbana, ainda que o entreposto comercial que lhe deu origem acompanhe praticamente toda a existência da cidade.
Sucedendo aquelas primeiras camadas, deparamo-nos, portanto, com a estética de uma pretensa “Paris N’América”, em forma de mercados, de portos, de boulevares, de mobiliários urbanos e de elementos outros que são a tradução na cidade de um padrão urbanístico francês e inglês da "belle époque" europeia, o mesmo padrão da Praça, onde eu e minha amiga estávamos a filosofar e a conjecturar sobre a cidade. Muito do que se retém hoje da imagem de Belém, e mesmo da metrópole vista em seu conjunto, ganhou contornos muito fortes a partir dessa dinâmica imprimida pela economia gomífera na Amazônia.
Assim, até a primeira metade do século XX, a principal imagem da cidade divulgada mundo afora era formada por esses contornos, permanecendo dessa maneira até a efetiva integração territorial e econômica da região ao restante do País, quando começaram a subir os modernos edifícios comerciais e residenciais mais altos, enclavados no interior do núcleo central e em suas imediações, alterando a paisagem que existia bem ao fundo do famoso Mercado. Eles foram aí construídos quando a legislação urbana era permissiva com relação a esse tipo de edificação relativamente alta para os padrões construtivos do entorno. Essa nova paisagem permaneceu assim quase inalterada até o século XXI, quando o núcleo central e seu imediato entorno tiveram sua imagem mais uma vez alterada com a subida das torres de altíssimo gabarito, alguns mesmo de quarenta andares, e que aparecem ao longe, bem ao fundo, a completar o "skyline" urbano que se desenha hoje para a cidade e para a metrópole.
Àquela cidade moderna de estilo eclético e sofisticado, ajusta-se, por fim, uma “Belém miamizada” - com edifícios, shoppings, "waterfront" etc. -, a compor uma espécie de paisagem pós-moderna, configuradora de bairros contíguos ao seu núcleo central, como o Umarizal e o Batista Campos, este último onde se situa a Praça já mencionada. E é exatamente essa mesma cidade que, supreendentemente, ganha cada vez mais destaque nos postais que a retratam. Eu mesmo, por várias vezes, pude constatar, por meio de postagens na internet, a imagem da cidade associada a suntuosos arranha-céus plantados à margem da Baía de Guajará a projetarem sua sombra sobre as águas, seguida de legenda clara, para não deixar qualquer dúvida aos visitantes e também para os que nela moram, que “não se trata de uma cidade de índios ou de animais selvagens” a trafegar por suas ruas e seus arredores.
É nesse contexto que se situa a pergunta que não quer calar: onde, afinal, foi parar a cidade indígena que tanta curiosidade despertou em minha amiga? Infelizmente não é a Mairi, como era denominada a povoação tupinambá onde hoje se encontra plantada Belém, que ganha destaque na imagem atual que se busca reter da cidade. Aquela cidade, existente aquando do início da colonização portuguesa e normalmente traduzida como “povoação de europeus” pelos habitantes originais, foi soterrada pela cidade lusitana que se sobrepôs a ela, a Feliz Lusitânia, de alma portuguesa, desenhada a partir do esquadro ibérico [5]. Mas, como identificar aquela cidade, suplantada pela colonização europeia, em nosso esforço de reconstrução dos estratos socioespaciais da cidade atual?
Do ponto de vista histórico-arqueológico propriamente dito, a Mairi está materialmente soterrada, abaixo da Belém europeia e também da norte-americana. Vestígios dessa civilização foram mesmo encontrados por meio de pesquisas e escavações que buscavam traços arqueológicos de nossos passados, expostos, por exemplo, no Museu do Encontro, constituinte do Complexo Feliz Lusitânia, localizado no marco de fundação da cidade. De outro modo, essa mesma Mairi está, em grande medida, soterrada em nossas memórias e em nossa identidade, ainda que ela resista e persista em se manifestar de diferentes formas na vida cotidiana e nos valores que dão alma à nossa cidade.
Assim, emoldurando todo o ecletismo urbano já descrito, é preciso considerar, nesse nosso empreendimento, os traços formados pela floresta e pelos rios até agora não levados em conta no "skyline" aqui reconstituído. Neste, além das formas da natureza propriamente dita, se fazem presentes os barcos, as canoas e o tipo humano característico que, ao aportarem na cidade com produtos procedentes do interior da região, denunciam a permanência de um tempo lento [6] que, mesmo atual, parece anterior a tudo isso, pois é portador de valores e de culturas que têm sua origem antes mesmo que essa sucessão de camadas de tempos e de objetos espaciais tivessem assumido configuração na forma de cidade.
[Foto 3]
Dali mesmo, de onde a minha amiga gaúcha me indagava a respeito da cidade perdida, podíamos ler, na placa de identificação do logradouro para onde nos defrontávamos, elementos dessa cidade a identificar o nome da Rua dos Mundurucus, e, no lado oposto a esta, a dos Tamoios, a delimitarem paralelamente a Praça. A reconhecer ainda o passado indígena da história amazônica e brasileira, podem ser identificados, no bairro bem próximo dali, o Jurunas, e em outros que lhe são adjacentes, nomes como: Rua dos Tambés, Rua dos Caiapós, Travessa dos Apinagés, Travessa dos Tupinambás (Foto 3), Rua dos Pariquis, Ruas dos Caripunas, e tantas outras que nomeiam logradouros por toda a cidade. Mairi faz-se presente também no nome e na vida de outros bairros, como o Paracuri, que é indígena não apenas em sua identificação, mas também na sua identidade, por, entre outras coisas, manter a tradição da cerâmica dos nossos antepassados amazônicos (Foto 4), especialmente a reprodução de artefatos marajoaras e tapajônicos.
[Foto 4]
Há, também, um glossário mairi que sobrevive na fala cotidiana dos habitantes de Santa Maria de Belém do Grão Pará, assim como valores e costumes que ficaram e que foram legados por nossas antigas gerações. Destas, herdamos, por exemplo, o gosto pelo banho de rio e de igarapé, ainda presente nas brincadeiras de crianças das periferias da cidade, a exemplo do que acontece no Rio Guamá, no bairro da Condor (Foto 5), no Igarapé do Mata Fome, na Pratinha, e em ilhas próximas que integram a municipalidade, como a do Combu, bem em frente à densa selva de concreto, em sua porção sul. Aquele, como igualmente o hábito de se desfalecer na rede após o cansaço ou após saborear os pratos da culinária paraense com forte influência indígena, como é o caso do açaí (Foto 6), não estão presentes no "skyline" comumente divulgado de Belém, mas estão presentes em sua aura, marcadamente indígena.
[Foto 5]
E por falar na culinária, esta, mesmo não sendo mais a damorida (comida à base de peixe ou de caça cozidos com bastante pimenta) propriamente dita de nossos antepassados, ainda assim, resguarda seus ingredientes principais nas tão apreciadas iguarias que alimentam não apenas o nosso corpo, como também nossa alma. Incluem a mandioca e todos os seus derivados, a biodiversidade do pescado e dos frutos nativos, que não se resumem ao filhote, ao cupuaçu e ao bacuri dos turistas; incluem igualmente as curas para o corpo e para o espírito através das plantas que compõem o receituário das erveiras e benzedeiras do Ver-o-Peso e várias outras espalhadas em barracos, palafitas, terreiros e quintais cidade a dentro; incluem, por fim, ritmos e percussões que embalam o corpo e dão vida às nossas coloridas e alegres “quebradas”.
[Foto 6]
Nada, entretanto, mais forte na paisagem de Belém a lembrar a cidade indígena que não seja a fisionomia de sua gente (Foto 7). Eu mesmo, a explicar para a minha amiga gaúcha sobre essa cidade em estratos, me vi espelhado em muitos dos transeuntes que cruzavam a nossa frente no calçadão ou nos que vendiam água de coco em um dos quiosques da Praça onde estávamos. No contorno dos olhos, no formato do cabelo ou na cor da pele, o povo mairi estava ali, como a dizer para a cidade e para as suas “tradições” brancas que, mesmo que as edificações, os traçados, a modernidade copiada da Europa ou a pós-modernidade imitada de Miami lhe neguem, nada, nada disso mesmo, é mais forte que o fenótipo de seus primeiros habitantes que atravessa o tempo e recobre a cidade, fazendo sobreviver a herança, hoje mestiça, do povo tupinambá.
[Foto 7]
Se tivesse, portanto, que descrever o "skyline" da Belém na sua plenitude, teria necessariamente que incluir esse outro estrato. Para isso, haveria que recompor em camadas e considerá-las em forma de tecnosferas (artefatos, objetos e sistemas culturais técnicos), mas, igualmente, em forma de psicosferas [7] (valores, jeitos, traços e sistemas culturais de comportamentos) que nem sempre a paisagem material nos revela na sua imediaticidade. Haveria, por assim dizer, que vasculhar as ruínas de sua alma, de sua psicosfera indígena (Foto 8), cabana, a iluminar seu "skyline" à maneira de uma aura e que a faz, "ipso facto", uma metrópole que não está simplesmente “na floresta”, mas que é, de fato, propriamente e verdadeiramente, “da floresta” ...
[Foto 8]
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* Saint-Clair Cordeiro da Trindade Jr. é Doutor em Geografia Humana/Prof. NAEA-UFPA e Sócio Efetivo do IHGP onde ocupa a Cad.ª Nº 21, patronímica de Ignácio Baptista de Moura.
Referências
[1] PRADO JÚNIOR, C. Evolução política do Brasil: colônia e império. 21 ed. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 77.
[2] RICCI, M. Cabanagem, cidadania e identidade revolucionária: o problema do patriotismo na Amazônia entre 1835 e 1840. Tempo [online], Niterói, v.11, n.22, p. 5-30, 2007. p. 7.
[3] SANTOS, M. Pensando o espaço do homem. 3. ed. São Paulo: Hucitec, 1991, p. 37.
[4] MOREIRA, E. Belém e sua expressão geográfica. In: PARÁ. Obras reunidas de Eidorfe Moreira. Belém: Cejup, 1989. v.1. p. 30, 34.
[5] FIGUEIREDO, A. M. Mairi dos tupinambá e Belém dos portugueses: encontro e confronto de memórias. In: SARGES, M. N.; FIGUEIREDO, A. M.; AMORIM, M. A. (org.). O imenso Portugal: estudos luso-amazônicos. Belém: Edufpa, 2019. p. 26.
[6] SANTOS, M. Técnica, espaço, tempo: globalização e meio técnico-científico informacional. São Paulo: Hucitec, 1994, p. 81.
[7] SANTOS, M. A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção. São Paulo: Hucitec, 1996, p. 203.